terça-feira, 3 de maio de 2011

Crime doloso

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Ele não se lembrava de ter passado por um verão tão quente e perturbado. Trinta e seis graus durante o dia e muita chuva, água e desespero durante o final da jornada. Não havia mais vagas pelas ruas, a inflação elevou o valor dos alimentos a preços exorbitantes e as manifestações ocorriam por todo o planeta. O que nos restava fazer? Nós, meros mortais? Seguir em frente. Trabalhar, estudar, pagar as malditas contas e torcer por um pouco de felicidade durante o período de folga.

Aquela época de sua vida podia ser chamada de “Aguardando pelo Final de Semana”. As segundas-feiras começavam com um único pensamento: quantos dias faltam para sexta? O problema era que a cada semana, os dias tornavam-se cada vez mais longos e cheios de obrigações. Talvez isso estivesse levando-o há uma vida dividida. Durante os dias de estudo e trabalho, concentrava-se em ser um rapaz centrado, integro e responsável. Nos tempos livres, sua principal ocupação era enlouquecer e se divertir. Não havia muitas regras. Álcool, drogas e mulheres fúteis e desinteressantes que nunca receberam um telefonema sequer após a noite anterior. A verdadeira felicidade é igual ao amor, está em todo lugar, mas a gente nunca encontra.

Uma bela noite, quando voltava de mais uma jornada de trabalho, saiu apressado do escritório e apertou o botão do terceiro andar. Saiu do elevador apenas para verificar se os manifestantes ainda estavam por ali. Meia dúzia de estudantes maltrapilhos haviam se acorrentado junto a catraca da entrada principal para mais um protesto sem resultados. Quem não chora não mama! Mas aquela era mais uma luta perdida. A polícia logo chegaria e dispersaria aqueles garotos na força. Os primeiros a apanhar seriam os três mil desocupados ao lado de fora. Aqueles da catraca certamente teriam um destino pior. Talvez presos. Talvez espancados.

Ele foi obrigado a sair pela garagem do prédio. Ainda atravessava a ponte em direção ao terminal de ônibus quando percebeu toda a gritaria. Enquanto subia o escadarão, podia ouvir ao longe os tiros de bala de borracha e as bombas de gás lacrimogêneo sendo atiradas contra a multidão.  Não era nenhuma novidade.  O protesto nunca acabaria com pedidos de “licença” e “por favores”. Ele continuou andando enquanto pensava qual era o caminho mais rápido até o lar. Não iria se rebelar. Estava ocupado demais preocupado com seus próprios problemas para aderir a uma batalha perdida. E caso tivesse culhões para fazê-lo, certamente seria demitido no dia seguinte. Essa não era, nem de perto, a solução. Covarde? Egoísta? Chamem-no do que quiser, mas ele nunca seria um “revolucionário”.

No ponto, como sempre, o transporte casual estava cheio, cheio até demais. Ficou parado por cinco minutos em frente a porta do primeiro ônibus que havia chagado e desistiu. Seria mais fácil voltar a pé. Teria sete quilômetros para refletir. O trajeto continuava sendo o mesmo de sempre, mas pelo menos seria percorrido de forma diferente.

Depois de alguns quarteirões, havia constatado que precisava cortar os cabelos, arrumar uma namorada, tirar férias e suspender por alguns momentos a boêmia e os exageros. Seria conveniente se ausentar do mundo por uma quinzena de dias. Viajar para algum lugar qualquer e esquecer todos os problemas e preocupações. Mas sabe qual a grande ironia? Nada disso seria feito e ele, mais do que ninguém, percebia isso com muita clareza. Tudo bem, ele precisava de algum modo dispersar os pensamentos e continuar a caminhada.

Depois de mais algumas dezenas de minutos, chegava a parte mais estranha do percurso. Razoavelmente próximo de sua casa, havia um cemitério que torneava uma grande avenida. Algumas partes desse trajeto eram, às vezes, um pouco perigosas, escuras e desertas. Alguns mendigos, flanelinhas e viciados deixavam o ambiente literalmente mais inóspito. Não que ele se preocupasse, afinal nunca havia sido assaltado nem tinha sofrido problemas severos vivendo em uma das metrópoles mais perigosas do país. Talvez essa falsa sensação de segurança fosse seu grande erro. Erro que lhe custaria caro.

Enquanto caminhava calmamente, percebeu a movimentação estranha de dois sujeitos que vinham pela direção oposta. Eles conversavam desconfiados e pareciam planejar alguma coisa. Seus instintos perceberam que algo estava prestes a dar errado. Aquele velho frio na espinha, o coração acelerado e o medo atento que desperta e aguça todos os seus sentidos. Não era necessário ser nenhum vidente para se dar conta que problemas sérios estavam a caminho.

O movimento dos carros era intenso, não havia brechas para mudar o curso, atravessar ou ir para o outro lado da rua. Os dois inimigos estavam cada vez mais próximos. Descalços, sujos e com feições nada animadoras. Os olhos injetados, as roupas em frangalhos. Andavam, quase corriam. Já haviam escolhido o alvo. Não havia como escapar. Seus olhos rápidos localizaram uma barra de ferro apoiada no poste a sua frente. Seria sua arma, sua defesa.

Estavam apenas há alguns metros do confronto definitivo, quando um dos dois algozes gritou e seu companheiro correu em direção a vítima. Percebendo o perigo, agarrou a barra de fero com seu braço direito e deferiu o golpe com toda sua força. A haste atingiu o meio da face do indigente. Exatamente embaixo do nariz. Ele não esperava tal reação. Não conseguiu desviar. Mal tentou evitar o golpe. A força do impacto foi tão grande que estremeceu todo seu braço e metade do tronco. O sangue jorrou e o inimigo desabou. Ficou estirado no chão, gemendo e, ao que parecia, tendo algumas convulsões. A barra havia entortado pela metade.

Seu companheiro assistiu toda a cena tranquilamente. Olhou diretamente nos seus olhos e então observou seu amigo no chão. Abriu um grande sorriso e começou a gargalhar. Enquanto ria, retirou uma arma da cintura e apontou para o trabalhador que apenas tentava voltar para casa. Não disse nada e divertiu-se mais um pouco. Sem ter como reagir, ele deixou a barra de ferro cair e se rendeu. O som do ferro batendo no concreto foi o único barulho que se podia ouvir. Ecoou. O semáforo tinha fechado e a rua ficou deserta por alguns instantes. A tensão era imensa. O assaltante não esboçou emoção, apenas tirou do bolso esquerdo um pequenino saco contendo um pó branco em seu interior. Provavelmente era cocaína. Colocou um pouco sobre as costas da mão que estava desocupada e cheirou com muita satisfação. Deu algumas fungadas e sorriu novamente. Guardou o restante da droga no bolso e levantou a arma. Mirou com atenção. Ninguém dizia nada. A luz verde do farol ascendeu. Os carros aceleraram, as buzinas tocaram, o caos urbano recomeçou e ele puxou o gatilho.

BAM!
                       BAM!
                                                                                                                BAM!
                                           BAM!
                                                                                      BAM!
                                                                                                                                                            BAM!
 BAM!

Nosso protagonista caiu e não mais se mexeu. Sem movimentos, sem palavras, sem discursos perdidos. O sangue escorria e chegava até a sarjeta. O assassino analisou atentamente a situação, desdenhou o corpo e perdeu alguns segundos observando a iluminação que era refletida nas poças de sangue. Guardou a arma e foi em direção ao seu companheiro. Ajudou-o a se levantar e novamente começou a rir. A situação debilitada em que se encontrava parecia alegrar, e muito, o amigo. Aos poucos começaram a se afastar, seguindo o caminho que vinham fazendo antes do sangrento encontro.

Não havia dúvidas, a intenção realmente era o homicídio. Sete tiros foram disparados. Todos contra o peito.  Não roubaram a vítima. Não levaram absolutamente nenhum pertence nem ao menos encostaram suas mãos no falecido corpo. Dobraram a esquina e desapareceram no horizonte.