terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Dia de fúria

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Você está acordado? Hein? BAM, BAM, BAM! Levante-se! Você precisa ir ao banco. Depois ao supermercado. Aproveite que você está de pé e faça um telefonema para mim, por favor. Desça e dê remédio para o cachorro. Leve sua irmã para a recuperação. Pague as contas. Faça um resgate. Resolva os problemas com os inquilinos. Ligue para a Sabesp. Fale com o seguro. Contrate uma cuidadora de idosos confiável. Vá buscar os exames da sua avó. Vá para a faculdade. Vá consertar o carro. Vá trabalhar. Vá tomar no cú! Viver, algumas vezes, é uma puta encheção de saco.

Mal acordo e já me impõem quarenta e oito tarefas imprescindíveis como se eu não soubesse mais quais são minhas verdadeiras obrigações. Essa chuva de lamentações e ordens antes mesmo que eu tenha tempo de ir ao banheiro, urinar, lavar o rosto e refletir um pouco sobre outro dia que começa. Claro, você fica bem puto! “Você acordou de mau humor hoje, hein?” Para não ter que ofender e hostilizar as pessoas que estão a minha volta, acabo guardando todos os insultos comigo.

Tomo um copo de leite e coloco Be Here Now para tocar. Vou para o banho. O ralo está entupido. A água demora a descer e uma grande poça cheia de água e sabão molha toda a superfície do box e mais um pouco do banheiro. Seco-me, visto as roupas, pego a chave do carro e vou para a garagem. Olho o automóvel e lembro-me que ele está batido. Um prejuízo de R$ 3.000,00. Abro a porta amassada, entro e dou a partida. O dever me chama. Continuo puto!

Chegando a clínica, um gordo simpático me atende muito bem. Faz o seu trabalho e me pede para aguardar. Tento ser paciente e educadamente vou me sentar ao lado do bebedouro. Dez minutos, vinte minutos, vinte e cinco. O gordo retorna.

- Senhor, estamos com um pequeno problema, mas já estou resolvendo seu caso. Logo, logo terei uma resposta. Parece que um dos exames extraviou.
- Extraviou? – A veia do pescoço pulsa bastante visível a olho nu. – E quanto tempo deve demorar?
- Não tenho certeza, senhor.
- Tudo bem! – O pulso ainda pulsa! – Irei resolver algumas coisas e mais tarde passo aqui para pegar.

Não digo adeus nem bom dia, apenas vou-me embora. Parto para o banco. Não há nenhum lugar para estacionar. Deixo o carro em local proibido com o pisca alerta ligado. A fila é grande. Havia me esquecido que era dia de pagamento. Os caixas lotados fazem-me esperar mais uma vez. Aguardo e então uso um caixa eletrônico para pagar as contas e fazer um saque. Água, luz, TV a cabo, plano de saúde, escola, faculdade, clube, internet, gás etc... Meu Deus! Não me lembro de alguma vez terem me enviado algum dinheiro pelo Correios, mas contas, essas sim, não cessam nunca de chegar.

Saio do banco e agradeço aos céus por não ter tomado nenhuma multa. Mais uma hora se foi. Dirijo-me ao supermercado. Está cheio. Paro o carro em frente a cancela. O segurança me olha intrigado e pensa que “mais um babaca bateu o carro e terá de descer do veículo para pegar seu tíquete.” Ele apenas sorri. E eu, como mais um idiota com o carro batido, puxo o freio de mão, abro a porta, saio, pego o tíquete e a cancela se abre. Volto para o carro e estaciono. Procuro por algum carrinho, mas não vejo absolutamente nenhum. Será que havia esquecido que era o dia mundial de fazer compras? Após aguardar alguns minutos, vejo uma funcionária empurrando um carrinho vazio. Tento chamá-la.

– Senhora! – Ela não ouve.
– Senhora, por favor! – Falo um pouco mais alto, mas ela continua a empurrar.
– Minha senhora, por favor, eu preciso desse carrinho! – Mesmo gritando, ela não escuta.
Ela larga o carrinho no compartimento reservado e volta para terminar suas obrigações. Esbravejo:
- PUTA QUE O PARIU!!! – A pequena senhora olha para trás com o rosto assustado. Dessa vez você ouviu, hein? Não diz nada, pensa um pouco e se vai.

Tentei ser educado várias vezes e não adiantou. Tudo bem, admito, eu estava errado. Eram apenas 9h53 da manhã e a idosa trabalhadora já havia ouvido um belo xingamento logo no início do dia. Talvez ela também fosse passar por uma jornada difícil.

Subindo a pequena passarela, avisto um casal. A garota é linda. Eles se beijam, se abraçam e riem. Posso ver em seus olhos. Ela o ama. Sinto uma ponta de inveja e percebo o quanto sou egoísta. Não amava profundamente ninguém há mais de dois anos. Havia dispensado duas lindas mulheres que realmente queriam estar ao meu lado e agora esperava um amor irreconhecível? Nunca estar satisfeito é um dos maiores problemas da consciência humana. Continuei andando e parti para as compras. Namorar por conformismo nunca havia sido uma opção.

Frutas, carnes, congelados, produtos de limpeza, álcool, besteiras. Mais uma hora se foi. Espero na fila para pagar. Está bastante grande. Mais uma quinzena de minutos perdida. Passo o cartão, vou para o carro, guardo as compras e dou a partida. Chego na cancela e mais uma vez o idiota precisa descer do automóvel para liberar a passagem.O segurança novamente sorri. Fico ainda mais puto.

Sigo direto para a clínica. Paro o carro em frente a entrada principal e vou verificar se o exame restante, finalmente, ficou pronto. O gordo imbecil continua lá. Ele e seu sorriso contagiante estampado na face. Olha para os lados, me vê e suspira. Lá vem merda!

- Senhor, conversei com os responsáveis, mas o exame continua em análise. A previsão é que fique pronto por volta das três da tarde. – Olho para o céu. Vejo apenas um teto imundo e respiro. Acho que minha artéria vai explodir.
- Está certo, volto depois. – Não havia cordialidade alguma em minha voz. Eu não tinha esse tempo disponível.

Outra vez vou-me embora. Não digo até logo nem mesmo boa tarde. Entro novamente no veículo e ligo para minha irmã.  Uma voz nunca ouvida antes me dá as boas vindas.

- Alô! Alô – Analiso. É uma versão homossexual do Patolino.
- Chame a minha irmã, por favor! – Estava sério.
- Beleza, peraê! – Concluo que o personagem infantil gay é mais uma grande sátira da vida.
- Alô! – Ela pára e ri um pouco, enquanto faço uma boa piada sobre seu amigo.
- Vá para frente da escola, que daqui a pouco estou por ai para te pegar! Tchau.

Dirijo-me até o colégio. Minha irmã vê o carro passando e se despede de todos. Ela está linda como sempre. Tem apenas quatorze. Mais alguns anos e terei problemas. As mulheres mais bonitas fazem questão de estarem sempre com os homens mais idiotas. É uma regra social que dificilmente é quebrada. Cedo ou tarde ela aprenderia. Lágrimas e revoltas. A porcaria inconfundível da adolescência. Ela entra e voltamos ao lar.

Almoço, pego minhas coisas e vou para o trabalho. Dessa vez o trajeto será percorrido de ônibus. O calor infernal derrete minha alma. Dou o sinal e entro. Está lotado. Nenhum lugar para sentar. Esbarro em muitos e peço desculpa a cada nova curva. Notas do subterrâneo continua guardado na mochila. Ler em pé é um dos novos desafios metropolitanos. Ainda puto!

Chego ao destino. Cumprimento todos e dou um rápido telefona. Preciso ser rápido e partir. Devo entrevistar um homem no vigésimo sétimo andar de um prédio a algumas quadras de distância. Não estou com saco nenhum para descobrir, conhecer e desvendar gente nova. Ossos do ofício, e eu preciso cumpri-los.

Estou suando. Continuo a correr. Apolo ri da minha cara. Entro e pego o elevador. Subo, penso, reflito, viajo. O elevador continua a subir. Saio, agradeço a ascensorista e apresento-me ao entrevistado. Conversamos. Faço anotações. Pergunto. Tiro fotos. Ele continua a falar. O tempo passa. Ele tagarelando, eu escrevendo. A entrevista termina. Despeço-me e vou embora. Quando chego até a rua, recebo uma linda surpresa. Está chovendo. São Paulo, A Cidade da Garoa, pegue seu guarda chuva e sorria. É apenas um chuvisco. Decido continuar. Decisão errada. No meio do caminho, o chuvisco torna-se um temporal gigantesco.Praticamente um dilúvio. Chuva vinda de cima, de lado, de frente, de baixo. Maldito verão! Estou ensopado. A água corre, os sapatos parecem duas pranchas de surfe. Espero embaixo de um toldo de um boteco nojento recheado de alcoólatras e prostitutas. A chuva dá trégua e volto para o trabalho.

Encharcado, paro no oitavo andar, no qual fica a enfermaria, para pedir qualquer remédio contra gripe ou resfriado. Quer ouvir a novidade? Eles não têm esse tipo esse tipo de medicamento. Enfermaria? Afinal, que grande porcaria era aquela? O ar condicionado iria acabar com todas as minhas defesas. Resumindo, eu estava completamente fodido. Iria adoecer. Pela primeira vez compreendi o verdadeiro ódio de Michael Douglas. Estava muito, mas muito puto. Era um dia de fúria!

Continuo com meu serviço. Não houve mais novidades. Termino minhas obrigações. A cidade está inundada. José Luiz Datena delira. Era um ótimo dia para o sensacionalismo. Vou até a copa. O chá acabou. Não quero café. Volto de mãos abanando. Pego minhas coisas. Está anoitecendo.  Despeço-me de todos e vou para o ponto.

A chuva continua. O ônibus demora a chegar como nunca demorara antes. O trânsito é memorável. Sento-me. Impaciente, esqueço-me de viver. Não consigo mais contar as horas. Finalmente consigo chegar em casa. Minha bunda parece um cubo! Converso com os cães. Pelo menos meus fieis amigos de quatro patas não possuem nenhuma crítica a fazer. Subo as escadas. Tiro as roupas molhadas e jogo tudo pelos ares. A meia gruda na parede. Recordo que me esqueci de passar na farmácia. Fico, outra vez, puto. Deito-me exausto na cama. Ligo a TV. Desisto. A vida venceu.