segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Enquanto você dormia

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Não saberia explicar o que ele fazia ali parado durante tanto tempo, imóvel e olhando para o mesmo lugar há horas. Também não poderia explicar o que fazia eu, aqui, imóvel, olhando para ele há um bom tempo. Alguma razão para estes atos deveria existir, para ele ou para mim, só que ainda não havíamos descoberto qual.

Um mendigo, sujo, fétido e, ao que parecia, extremamente louco e atento para o que estava acontecendo dentro de sua mente. Com um cobertor imundo nas mãos e apenas uma bermuda cobrindo o corpo, se divertia sozinho e ria do que somente ele poderia explicar. Já eu, um jovem “rico”, limpo, bem vestido e, ao que me lembrava, aparentemente sóbrio o bastante para não me entreter com tudo aquilo, perguntava-me o que estávamos realmente fazendo. Seria melhor parar um segundo para refletir se o louco era ele ou eu, afinal.

Quando levantei, atravessei o portão em passos lentos e me dirigi à rua. O chão estava coberto de lama e meus sapatos brancos, completamente sujos. No momento em que voltei os olhos a um ponto fixo a minha frente, senti um vulto se aproximar em um movimento extremamente rápido. Sem esforço algum já havia me jogado ao chão. Levantei-me como um raio, mas fui nocauteado na mesma intensidade. Estava tudo muito claro e por mais que abrisse os olhos, nada podia ver. Quando finalmente minha visão retornou, trouxe consigo uma dor incrivelmente forte em meu maxilar. Percebi que o sangue escorria por meus lábios, enquanto me arrastava pela lama tentando entender o que estava acontecendo. Não fazia a mínima idéia sobre o que havia me atingindo, mas somente um tolo não perceberia que as coisas já não andavam bem.

Enquanto meu estado de consciência voltava ao normal, pude ver que o mendigo, já não mais imóvel, era o meu algoz. Mais um impacto estrondoso em minhas costelas e deitei-me ao solo para gemer e cuspir o resto de sangue que, agora, me inundava a boca. Meu companheiro sorria como um inocente menino e possuía uma pequena faca nas mãos. Seus dentes eram de ouro e apesar do ato hostil, não senti raiva ou maldade em suas intenções, mas isso não fazia minha dor diminuir. Esforcei-me para tentar fugir, porém um olhar inóspito do inimigo me paralisou. Não havia nada nem ninguém, apenas uma força invisível que me impedia de mover até mesmo os dedos dos pés.

Com as costas no chão, senti os pingos da chuva começarem a cair. Ele se aproximou e se ajoelhou próximo ao meu tronco. Proferiu palavras que não podia entender e apunhalou meu estomago com a arma. A dor não veio, mas um pavor intenso dominou meus pensamentos. Seria esse o fim? Enquanto abria meu corpo e arrancava, um a um, meus órgãos, pensava nos amores que havia deixado para trás, nos amigos e familiares que jamais voltaria a ver e no tempo perdido em vão.

Meu coração já estava em suas mãos e minha vida já não me pertencia mais. Pingava e batia mesmo estando fora do corpo. Ele se levantou com o órgão em sua mão direita e, simplesmente, deixou os restos ali ao meu lado. Por que? Talvez para que antes da morte tivesse o prazer de entender que, apesar de tudo, por dentro, somos todos iguais. Apenas sangue e carne. Antes de ir embora, jogou seu cobertor sobre meu corpo e se despediu. Dobrou a esquina enquanto o temporal caía. “Adeus” foi a única palavra que realmente pude compreender.

Fazendo minhas últimas reflexões, minha visão ficava cada vez mais turva e escura. O sangue e as gotas da chuva davam-me uma leve sensação de bem estar. Não pensava mais em arrependimentos e, muito menos, no que poderia, um dia, ter feito. O último desejo era que pudesse ver seu rosto uma última vez. Tudo escureceu e me despedi do mundo pensando nela.

terça-feira, 24 de novembro de 2009

Talvez


Talvez faça sol ao amanhecer

Talvez não

A chuva pode continuar ainda por muito tempo

Mesmo que acabe me esquecendo de lhe dizer adeus


Talvez levante e não me lembre mais

Que tudo já não possui tanta importância assim

Talvez não

É justo fingir por quanto tempo?


Talvez não tenha mais tempo para acreditar

Que o engano, algumas vezes, se confunde com o pecado

Amor, paixão, luxúria?

Talvez não


Talvez não

Nunca lhe disseram até onde chegaria o seu limite?

E o quão difícil seria partir?

Lidar com o fracasso te deixou extremamente vulnerável


Seria injusto prever?


Talvez...

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

O mar tá aí pra peixe

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A chuva estava perto de cair, podia sentir o cheiro do molhado como já tivesse despencado. Meu dia se encontrava em um domingo entediante e sem ocupação alguma. Me sentia um pouco inútil naquele momento, pois não fazia nada por ninguém e nem por mim mesmo. A boa noticia que, ali estirado no meio do quarto, nem ligava para isso. Como de costume, em certas horas a solidão faz de você um grande estudioso de si mesmo. Há essas alturas eu já tinha doutorado nessa matéria. Meu único defeito era que eu não conseguia assumir metade dos meus erros.

Tocava “Fever Dog” no radio e eu cantava sozinho. Fiz uma pequena comparação com o Snoopy, na cena que ele fica em cima da casinha. Talvez fosse exatamente a posição que eu estava fazia uma hora. O calor sufocava toda vez que eu lembrava que estava quente, que ironia não, pensei comigo mesmo. Com uma musica, nada para fazer e sem vontade algum de escrever algo recorri a velhos pensamentos. Reflexão é algo incrível, até você reparar que aquele erro que tentou corrigir falhou algumas vezes. Bastou cinco minutos para mandar tudo para a puta que pariu e pensar em algo decente.

Aí me lembrei de uma noite interessante, que havia quase deletado da minha mente. Subia de madrugada, em uma daquelas noites difíceis, uma rua a caminho de casa. Seguia a passos lentos, e o sereno não estava lá ajudando muito na minha volta. De repente, em um daqueles latões de entulho, pula um mendigo negão, mas todo branco, sujo de pó branco. Arregalei o olho e fiquei imóvel, fixando o olhar na cara dele. Foi quando ele me disse:

- Argh! – Cuspiu no chão e reclamou - Ainda bem que a porra do Cal me aquece – disse em um tom de bêbado mais engraçado que já tinha escutado.

Eu ainda estava perplexo, não sabia o que dizer. Então ele olhou para minha cara e disse:

- Que foi meu chapa?! Nunca viu não?

- Um negão de beiço pequeno não! – respondi sem pensar muito.

Nós dois ficamos parados por volta de uns dois segundos, foi rápido e longo ao mesmo tempo, difícil de explicar. Então ele sorriu, faltando alguns dentes, e me deu um abraço. Eu apenas ri junto com ele, seu abraço foi de alegria, alguém havia dado atenção e feito ele rir. Tem pessoas que sofrem muitas carências nesses aspectos. Dei minha toca e um moleton que estava debaixo da minha blusa e fui embora.

Então levantei do chão e fui na varanda acender um cigarro. Domingo é como ser fuzilado, você sabe que no final você vai se fuder de qualquer jeito, e seguindo o pensamento, segunda então é a bala no cérebro. Que domingo entediante, pensei, olhando para uma lagartixa que, ali imóvel, me encarava...

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Simplesmente assim

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Estava sentada com as pernas cruzadas e o braço esquerdo apoiado sobre a mesa, com o garfo entre os dedos. Na mesa, um pequeno prato contendo uma porção de salada de frutas. Era linda, loira e possuía a pele clara como a neve. Apenas sua presença acabava deixando aquela, sem graça, praça de alimentação, no mínimo, muito mais interessante.

Vestia uma camiseta preta bastante feminina e uma calça jeans comum e extremamente simples, mas que a tornava ainda mais bela. O cabelo loiro e liso estava jogado para trás por sobre os ombros e deixava seu rosto único livre para que todos pudessem apreciar.

Duas pulseiras, uma em cada braço, a tornavam ainda mais elegante e um anel prateado no dedo anular de sua delicada mão direita entristecia todos a sua volta, pois agora sabiam que ela era uma mulher comprometida.

Como se nada pudesse interrompê-la, delicadamente continuava a comer e fazia pequenos intervalos para poder nos agraciar com um inesquecível e inocente sorriso, que, sem alguma real intenção, encantava todos que estavam ali presentes.

Assim que terminou, levantou cuidadosamente e andou em passos lentos para jogar seu prato fora. Voltou e, sorrindo, se despediu. Enquanto subia a passarela, podíamos observar a tatuagem que cintilava em sua cintura pelo pequeno espaço entre a camiseta e a calça, e o qual deixava sua macia pele à mostra. Enquanto continuava seu caminho, pude perceber que, sem expressar nenhum esforço para se destacar dentre os demais, todos paravam para observar que ela estava, mais uma vez, indo embora.