terça-feira, 31 de agosto de 2010

Asilo forçado



Eram quase 4h30 da manhã. O telefone tocou. Tentei ignorar, mas algum pressentimento desagradável me dizia que era necessário atender. Virei-me até o aparelho com uma tranquilidade incomum e tirei-o do gancho.

– Alô! ­– Disse com a garganta bastante arranhada.

– Boa noite, senhor! Meu nome é Fábio Cardoso, sou da Polícia Militar. Uma senhora, provavelmente sua avó, nos deu esse número e está aqui na Rua Aimberé, próxima ao 1900. Quebrou o pára-brisa de um carro estacionado e está completamente incontrolável. Ela está descalça, muito perturbada e fazendo um grande escândalo na vizinhança. Você precisa vir buscá-la agora!

Parei um segundo para analisar a situação. Dei um leve suspiro e respondi:

– Tudo bem. Já estou saindo daqui. Boa noite!

Levante-me bastante incomodado. Preocupado com o que poderia ter acontecido. Fatos anteriores já haviam me deixado bastante estressado, mas não havia muito que pudéssemos fazer, apenas aceitar e entender que não podíamos, por mais que tentássemos, culpar absolutamente ninguém.

Coloquei a típica calça jeans, calcei os tênis e saudei os cães enquanto colocava a camiseta. Cocei os olhos para espantar o sono e peguei a chave do carro. Sai de casa tentando organizar a infinita quantidade de dúvidas inexplicáveis que embaralhavam meus pensamentos.

Ela era e foi uma senhora sadia por muito, muito tempo. Sempre amou sua família e ajudou a todos da forma que podia. Era devota, inteligente, instruída e extremamente caridosa com as pessoas que estavam a sua volta. Possuía somente 1,60m, mas era um ser de alma e coração imensos. Fez o que esteve ao seu alcance para que todos ao seu lado se contentassem com o melhor. A avó que todos, pelo menos por um único dia, gostariam de ter. Claro que, já com oitenta anos, apresentava alguns problemas que a velhice carrega, mas nunca poderíamos esperar que as coisas terminassem assim.

Com o passar do tempo, medos incomuns começaram a dominar sua rotina. Dormir sozinha e ficar em seu próprio quarto por algumas horas passaram a ser tarefas inconcebíveis e duvidosas. Brigas e discussões por atitudes nada convencionais começaram a acontecer frequentemente. Era possível conviver com tais problemas, mas tudo, aos poucos, foi ficando cada vez pior. O receio de tudo a apavorava mais a cada dia. O fanatismo religioso já não supria suas fraquezas e sua sanidade começou a mostrar pistas de que algo não andava tão bem assim. Esquecia-se dos compromissos. Acontecimentos que não existiam passaram a ser tornar verdadeiros no seu cotidiano. As conversas ficaram mais fantasiosas e já não era possível encontrar algum sentido nas palavras e frases proferidas. O porque de tudo ainda era um grande mistério.

Quando as fugas do lar tornaram-se constantes, ficava difícil manter a traquilidade inabalável. Todos ficavam, pouco a pouco, cansados, com o humor alterado e as brigas eram cada vez mais comuns. Ela passou a esquecer o verdadeiro caráter das pessoas que mais amava e deixou que idéias falsas tomassem conta de seu interior. Seus netos tornaram-se, para ela, assassinos e viciados. Sua única família, agora, em sua frágil consciência, detestava-a e sua permanência no próprio lar ficou insuportável. Não porque era impossível viver em harmonia, mas porque ela não mais entendia o que realmente acontecia ao seu redor e não nutria nenhuma vontade de permanecer conosco.

As agressões aos que tentavam ajudar eram apenas mais um capítulo da saga que insistiam em piorar. O ponto crítico ocorreu quando trancou-se no quarto por horas intermináveis, evitando qualquer contato com  mundo exterior e negando- se a receber alguma forma de carinho. Sua transferência foi concluída assim que a porta foi arrombada, porém, finalmente, ela parecia estar mais calma e feliz.

Os sintomas pioram a cada dia e os tratamentos convencionais não conseguem amenizar o progresso da doença. É muito mais difícil conformar-se quando não temos opções. Os sentimentos de culpa e perda ainda não desapareceram. Talvez nunca acabem. Internar uma das pessoas que você mais ama em um asilo – ou casa de repouso para aqueles que buscam disfarçar a verdade –, longe dos olhos de quem apenas lhe quer bem, não é, e nunca será, uma tarefa fácil. Nós continuaremos sempre a lhe amar mesmo que você, um dia, acabe se esquecendo disso.

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